quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Essência do Cristianismo” de Ludwig Feuerbach, Por José Ricardo Martins

A RELIGIÃO SOB UM OUTRO OLHAR:
Comentário sobre o livro A Essência do Cristianismo” de Ludwig Feuerbach.
Por José Ricardo Martins

“O solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação de seus pensamentos íntimos, , a confissão pública de seus segredos de amor.”
“Como forem os pensamentos e a disposições do homem, assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais, será o valor de seu Deus. Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento”.
“Deus é a mais alta subjetividade do homem, abstraída de si mesmo.”
“Este é o mistério da religião: o homem projeta o seu ser na objetividade e então se transforma a si mesmo num objeto face a esta imagem de si mesmo, assim convertida em sujeito.”
(Trechos de “A Essência do Cristianismo” de L. Feuerbach)

1. Introdução
Este artigo tenta expor as principais idéias do filósofo alemão Ludwig Feuerbach a respeito da religião. A religião, especialmente o cristianismo, foi o centro da atividade intelectual e da “perdição” do ousado filósofo que rompeu com o pensamento de seu mestre Hegel e transformou a religião num fenômeno antropológico, expressão da natureza humana.
Considera a religião a essência imediata do ser humano, acreditando assim poder explicitar os "tesouros escondidos no homem". Reduz atributos divinos da teologia a atributos humanos da antropologia. Sua filosofia procura transformar a teologia de Hegel em uma antropologia baseada no mesmo princípio, a unidade do limite e do infinito. Compondo a esquerda hegeliana, Feuerbach defende a idéia de que para Hegel a religião não é razão, e sim representação, sendo então redutível ao mito. Esta facção, em um primeiro momento, faz uso das idéias hegelianas dirigindo-as contra a teologia e a filosofia tradicional. Em uma segunda etapa, acaba por criticar as abstrações hegelianas em defesa do homem concreto, e a fé cristã em defesa de uma metafísica imanentista. Distancia-se de Hegel, entre outras coisas, ao eleger o homem concreto como sua prioridade e não a idéia de humanidade.

2. A Essência do Cristianismo
Em sua obra-prima, “A Essência do Cristianismo” , Feuerbach aborda o fenômeno religioso a partir do próprio homem.
“O homem se distingue do animal pela consciência.” Em outra passagem afirma: “Consciência é a característica de um ser perfeito”. O homem tem consciência de si através do objeto. Ou seja, o outro: o eu e o tu, na visão positivista.
A trindade humana - amor, razão e vontade - é a essência do próprio homem, é o homem completo:
- a força do pensamento é a luz do conhecimento, a razão;
- a força da vontade é a energia do caráter;
- a força do coração é o amor.
Querer, sentir e pensar são perfeições, essências, realidades... são infinitos, ilimitados. É ser consciente de si mesmo. É impossível, afirma Feuerbach nos remetendo à Descartes quando fala que Deus só pode ser um ser perfeitíssimo, ser consciente de uma perfeição como imperfeição; impossível sentir o sentimento como limitado, impossível pensar o pensamento como limitado.
Assim, o Ser Absoluto, o Deus do homem, é a sua própria essência. Feuerbach, já no início de sua obra, antropologiza a Trindade cristã em amor, razão e vontade, e que nada mais é do que a nossa própria essência. E a consciência disso é o que nos distingue dos animais. Amor, razão e vontade, essências do ser humano, são realidades ilimitadas, infinitas assim como Deus o é.
A antropologização segue seu curso em Feuerbach. O querer (a vontade) torna o homem infinito. O mesmo acontece com o sentir e o pensar que tornam o homem infinito e ilimitado, que são nossas construções de Deus. A consciência disso é autoconfirmação, auto-afirmação, que somos seres ilimitados e que projetamos tudo isso em Deus. Nossa educação cristã não permite que tomemos para nós adjetivos de tamanha grandeza. Não nos permite que possamos “conhecer mais que Deus” ou “se igualar a Deus”. Feuerbach, tornou-se maldito por ter ousado dizer que o que temos de melhor, de mais sublime, enfim nossa essência, dizemos que é Deus. Ou seja, projetamos nossa essência em Deus e nos esquecemos que isto somos nós mesmos, nos anulando. Por outro lado, ele também afirma que isto é positivo, pois faz nos lembrar e ter consciência do melhor de nós mesmos.
Feuerbach continua na linha cartesiana: “o divino só pode ser conhecido pelo divino”. Isto quer dizer: se não tivéssemos o divino em nós, não poderíamos falar, exprimir ou experimentar o divino. E o divino não é razão, é sentimento: “a essência divina que o sentimento percebe é em verdade apenas a essência do sentimento arrebatada e encantada consigo mesma – o sentimento embriagado de amor e felicidade”. O autor constata que fez-se do sentimento a parte principal da religião, bem como a essência objetiva dela. “O sentimento é transformado num órgão do infinito, da essência subjetiva da religião, o objeto da mesma perde seu valor objetivo”. E no objeto religioso a consciência coincide com a consciência de si mesmo, o seu íntimo. Já num objeto sensorial, a consciência está fora, e no religioso, o objeto está dentro do próprio homem, sendo sua essência. Assim, amparado em Agostinho que diz que “Deus é mais próximo, mais íntimo e por isso, mais facilmente reconhecível que as coisas sensoriais e corporais”, Feuerbach resume sua visão antropológica da religião:
“A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo; o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. [...] A religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos...”
Nesse sentido, a religião tornou-se, para Feuerbach, uma idolatria, pois o homem adora a sua própria essência: “os predicados divinos são qualidades da essência humana” e “na religião, o homem ao relacionar-se com Deus, relaciona-se com a sua própria essência”.
Feuerbach percebe a necessidade existente no homem da religião – “o sentimento religioso é o mais alto sentimento de conveniência” - uma vez que ela lhe serve como alívio frente às angústias, à dor e ao sofrimento da existência, que a natureza somente provoca e não alivia. O homem é dependente da natureza para existir. A natureza é sentida como necessidade, e é ai que surge a religião, opondo-se entre o querer e o poder, pensamento e o ser. Diante da natureza, o homem sente-se limitado, finito, já a religião teria a possibilidade da onipotência e da infinitude de Deus para oferecer ao homem. Os desejos do homem estariam assim representados enquanto possibilidade na figura de Deus, que é a representação imaginária da realização de todos os desejos humanos, superando os limites que a natureza lhe impõe. Deus domina a natureza, pois para o homem, ele é quem a cria. Assim sendo, Feuerbach desloca a divindade de um Deus externo ao homem para o interior do próprio homem. Ele é o Deus dele mesmo, e diz: "O Ser Absoluto, o Deus do homem é o próprio ser do homem." Deus é então a consciência que o homem tem de sí mesmo, de seu ser. A exemplo disto, a perfeição divina nada mais é do que o desejo do homem de ser perfeito e a consciência que tem de si, enquanto um ser imperfeito. O amor, a crença, o desejo, etc., atribuídos a Deus, que segundo Feuerbach, deveriam voltar-se para o próprio homem e para seu igual. Acredita que o homem deveria acreditar nele mesmo. No entanto, este filósofo aponta um erro na religião, que é a ilusão que ela cria. Ao mesmo tempo que oferece um sentido de vida para o homem e uma forma de ele lidar com suas limitações, a religião acaba por distânciá-lo dele mesmo, exteriorizando a própria divindade.

3. Conclusão
Como vimos, para Feuerbach, o homem é quem cria Deus e não o contrário. Segundo o autor, a filosofia precisa dar conta deste homem como um todo, e não somente da razão que o compõe. Deve abraçar a religião, enquanto fato humano, considerando este homem em comunhão com outros homens, caminho este através do qual ele pode sentir-se livre e infinito. O autor acredita que somente a religião dá conta do homem em sua totalidade. Feuerbach sugere que a religião desempenha um importante papel na vida do homem concreto. Para ele, a consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si. Acredita que para se conhecer um homem, basta conhecer seu Deus, já que na sua concepção, a religião, o Deus do homem, nada mais é do que a projeção da intimidade da essência do homem. Assim sendo, para Feuerbach o método da teologia é a antropologia, pois o homem deposita em seu Deus a sua essência.
Em sua radicalidade, torna-se patente em Feuerbach que a religião e mesmo o estado são institutos irracionais a serviço da racionalidade, pois revestem-se de um caráter racional para induzir “vulgo” à submissão.